O silêncio que protege o monstro

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Um vídeo de pouco mais de vinte minutos. Foi o que bastou para um youtuber, com humor ácido e um olhar atento, escancarar uma das realidades mais sórdidas do mundo digital: a sexualização de crianças. O vídeo de Felca viralizou, mobilizou milhões de pessoas e, como raramente acontece, fez autoridades se mexerem. De repente, estava na pauta da imprensa, do Congresso, das conversas de família.

E não se tratava de um debate teórico. Era concreto, real e brutal: meninas e meninos colocados em situação adulta — às vezes por ingenuidade, às vezes por manipulação, outras vezes, pela perversidade criminosa de adultos que lucram com isso. Pequenas celebridades digitais moldadas para vender sorrisos, dicas e… para alimentar o mercado mais abominável que existe.

Enquanto assistia à repercussão do vídeo, lembrei de O Som da Liberdade. Um filme que não é obra-prima, mas que aborda, com coragem e respeito, o tráfico internacional de crianças. Baseado em fatos reais, mostra um agente que, cansado de prender criminosos sem resgatar vítimas, decide arriscar a própria vida para salvar uma menina. Ao final, imagens reais das operações. Duro, mas necessário.

O curioso é que, quando o filme foi lançado, parte da imprensa e do show business não discutiu seu conteúdo. Discutiu quem o produziu. “Filme de direitistas”, diziam — logo, a esquerda deveria boicotar. Surgiram acusações de que se apoiava em “teorias conspiratórias” e, pior, insinuações de que falar desse tema era, de alguma forma, alinhamento com agendas políticas específicas. A consequência? Milhares de pessoas deixaram de assistir. O debate, que deveria ser sobre proteger crianças, foi reduzido a mais um Fla-Flu ideológico.

E aqui está o ponto: não importa se a câmera está na mão de um conservador ou de um progressista; importa que ela esteja apontada para a verdade. Porque o monstro que lucra com a exploração infantil não vota, não defende bandeira partidária. Ele se esconde justamente nesse território de brigas estéreis, onde quem poderia combatê-lo está ocupado demais decidindo se o inimigo está à esquerda ou à direita.

Quando O Som da Liberdade foi tachado de “filme político” e desqualificado por quem nunca viu, a quem isso serviu? Ao público? Às crianças sequestradas? Ou aos poderosos que, como mostrou o caso Epstein, transitam entre festas e jatinhos, seja com Clinton ou com Trump, enquanto vidas são destruídas? No Brasil, segundo dados do ChildFund, somos o segundo país no mundo em exploração sexual infantil. E ainda temos tempo para brigar sobre quem produziu o filme?

A fala de Felca incomodou porque não deixou espaço para essa cortina de fumaça. Mostrou rostos, nomes, práticas. Escancarou o que muitos preferem fingir que não existe — ou que existe só “lá fora”. A reação foi imediata: investigações, derrubada de perfis, parlamentares querendo agir. Mas até quando?

Porque enquanto a pauta for sequestrada por disputas ideológicas, quem sequestra de verdade — e de forma irreversível — são eles: os criminosos que tiram de uma criança o direito de ser criança.

E nesse caso, o silêncio — seja ele por conveniência política, medo ou preconceito contra quem traz a notícia — não é neutro. É cumplicidade.

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