“Hoje é o grande dia”, conversou Tibiriçá consigo mesmo. O jovem de pele amorenada estava completando quinze anos. Corpo magro e alto. O cabelo, negro e liso, balançava com a força do vento.
Todos os jovens da tribo quando completavam seu décimo quinto aniversário deviam demonstrar que já eram homens feitos, participando de testes de coragem e valentia. A prova era escolhida pelo próprio desafiante, o que por si só já era uma alternativa complicada – pois a própria avaliação já começava com o tipo de desafio que o participante iria escolher.
Quando criança, o pequeno índio admirava as proezas que os jovens faziam para serem reconhecidos como homens. Alguns encaravam árvores enormes para buscar os ovos de alguma ave feroz. Outros subiam nos lombos de cavalos selvagens. Esse era realmente um grande momento na vida dos meninos. Depois dessas provas, eram considerados adultos e, desse modo, tinham autorização para casar e constituir suas famílias.
Sempre sonhara com esse momento, mas agora estava nervoso. Mirava o sol que se despedia e a lua que vinha enfeitar o pala negro da noite. Já sabia o que ia fazer. Conhecia o risco de sua escolha, mas precisava estar à altura. Sabia que todos esperavam muito do filho do líder daquelas gentes. Todos apostavam alto no jovem índio. E ele não podia decepcioná-los.
Na verdade, sabia qual seria seu desafio há muito tempo. Em uma noite, não muito diferente daquela, estava contando estrelas e escutando as histórias dos mais antigos quando foi chamado pela amiga Potira para ver uma coisa muito estranha. Ambos não tinham mais do que oito anos de idade e correram entre as árvores até chegar aonde a menina queria.
– Olhá lá, Tibi. O que é aquilo? – A menina apontou para o horizonte escuro e, bem ao longe, o menino enxergou algumas luzes dançando.
– Parece fogo, Potira! Será que tem alguém aqui por perto?
A menina fez cara de quem não sabe e disparou correndo para perto de seus pais. Já Tibiriçá ficou hipnotizado pela dança de fogo que enxergava ao longe – na linha do horizonte.
Quando o fogo desapareceu, o pequeno índio foi atrás de seu pai, o líder daquela tribo, e queria saber sobre o fogo que havia visto.
– Meu filho: guarde segredo sobre esse fogo. Ninguém pode saber que temos um Boitatá por perto, pois ele causa medo e destruição.
Tibiriçá não comentou com ninguém. Mas não conseguiu resistir ao fascínio que a criatura lhe causara e, por isso, ficou vigiando e procurando pelo Boitatá – primeiro, à distância, e, depois, foi chegando mais perto. Depois de muitas observações, descobriu que sempre quando a lua minguava, a cobra aproveitava a escuridão e saía para caçar.
Descobriu, ainda, que quando a cobra negra sai das profundezas da água, sua pele lustrosa e incrustrada de pedras vermelhas incendiava-se. Além disso, descobriu que ela cuspia fogo para caçar suas presas. Sempre de longe, sem ser visto, acompanhava o espetáculo de fogos produzidos pela cobra selvagem.
Teve muito medo quando, em uma noite quente e sem estrelas, aproximou-se demais do esconderijo da fera. Tibiriçá parecia hipnotizado e foi se aproximando das águas calmas do lago. Na margem, uma onça pintada que bebia tranquilamente farejou o menino e ficou observando o seu caminhar trôpego.
A onça rugiu e ficou em posição de ataque. O índio foi despertado de seu transe e, ao reparar no animal, passou a tremer tanto que não conseguia controlar seus movimentos.
Com passos lentos e elegantes, a onça aproximava-se de Tibiriçá, que estava paralisado de medo. Quando o bichano estava acelerando a corrida, pronto para o bote fatal, as águas do lago explodiram em fogos e luzes vermelhas.
A cobra-de-fogo, com olhos incendiando, urrava com raiva a procura de suas presas. A onça pintada instantaneamente esqueceu do jovem índio e partiu para o ataque contra o Boitatá.
As investidas foram ferozes, mas a cobra raivosa cuspiu fogo, cegando a outra fera e, em segundos, enrolou seu corpo escamoso no corpo da onça. O boitatá quebrou todos os ossos do outro animal e, logo depois, o abocanhou e o arrastou para as profundezas da água.
Da cena dantesca, Tibiriçá apenas via o vapor que emergia da superfície da água. A calmaria voltava ao local. Fazendo forças para ficar em pé, o pequeno índio correu para casa – sem jamais olhar para trás.
Desde então, Tibiriçá traçou um plano. E no dia do seu décimo quinto aniversário, ele o executaria. Nunca mais havia visto o Boitatá – mas sabia que ele ainda estava repousando nas profundezas do lago.
O menino caminhou até onde se encontravam os anciãos e líderes tribais, pediu licença e disse que já estava pronto para a prova.
– Tibiriçá, o filho de Ibajé, já escolheu seu desafio, então? – perguntou um dos guias espirituais da tribo.
– Já escolhi, sim senhor.
– E então, meu filho, qual foi? – perguntou Ibajé.
– Vocês em breve saberão, meu pai. Preciso apenas de uma lança bem afiada e de um cavalo corredor.
Os preparativos foram feitos. O jovem foi presenteado com a lança que pertencera a seu avô e com o cavalo Ventania, um potro recém domado, porém rápido como uma flecha. Enquanto o jovem pintava o cavalo com cores e temas de guerra e vestia um reforço em sua roupa de couro curtido, pensava no que fazer quando chegasse à beira do Lago Negro. Mesmo conhecedor dos perigos, estava confiante.
Dois cavalheiros o acompanhariam a distância, para conferir o desafio e protegê-lo de algum dano irreversível. Quando chegou a hora da partida, todos desejaram boa sorte. Tibiriçá montou no cavalo e saiu disparando a todo galope.
Depois de um tempo de cavalgada, o trio chegou próximo às margens do Lago Negro. Aquele lago não era grande, mas, apesar de calmo, era profundo e perigoso. O rapaz pediu que seus acompanhantes o esperassem a uma certa distância, desmontou do cavalo e o deixou esperando perto da toca da fera – porém, com uma distância segura em caso de fogos.
Bem próximo do lago, o rapaz tirou toda a roupa e se atirou na água, apenas com a lança presa firmemente às suas mãos e um sonho objetivo em suas ideias.
O mergulho foi ligeiro e profundo. O menino ia cada vez mais em direção às profundezas negras do lago, com a arma sempre em punho. Não conseguia enxergar nada, mas algo lhe dizia que a besta estava próxima.
Precisava encontrar a fera que habitava aquelas águas negras. Depois de algum tempo, foi perdendo as forças, sentindo a pressão nos ouvidos – nem nos sonhos mais férteis imaginava que essas águas eram tão profundas. Mesmo assim, não iria desistir, não voltaria para casa derrotado – nem que aquilo lhe custasse a vida.
Os cavalheiros que estavam à espera ficaram preocupados. As águas do lago estavam paradas, mas não havia nenhum sinal do jovem. Será que ele havia morrido?
Tibiriçá começou a ficar tonto e a perder a força. Faltava-lhe oxigênio. Quando estava prestes a desmaiar, sentiu um beijo na boca. E mais outro beijo. Seus olhos passaram a enxergar nas profundezas, e as águas passaram a ter uma coloração amarelada, como se estivesse nadando em mel. Descobriu três sereias de cabelos de ouro a lhe guiarem e a lhe fornecerem ar.
Os quatro, juntos, nadaram em direção ao mais profundo canto escondido do lago. Lá, encontraram uma cobra enrolada e dormindo. Era um animal negro como a noite. Havia diversas pedras vermelhas e preciosas encravadas em todo o seu espesso couro. Ajudado pelas sereias, o índio se aproximou da cobra e, com a lança, lhe arrancou uma joia do couro. O animal, de súbito, abriu seus olhos de fogo e urrou de dor e raiva.
Do lado de fora, o chão tremeu, e o som podia ser escutado para além águas que borbulhavam. Os dois cavaleiros tiveram dificuldade em conter seus animais, pois, ao pressentirem o perigo, os cavalos estavam ansiosos para correr.
Assustado, Tibiriçá tentava nadar em direção à superfície, mas suas forças não seriam suficientes. Uma sereia pegou sua mão e passou a levá-lo para a superfície, numa velocidade que o menino jamais conseguiria. Ele pensava estar delirando, pois sentiu mais um beijo de mel em sua boca, e o ar lhe inflando novamente o peito.
As outras sereias bloquearam a saída da fera, mas não por muito tempo. Livre, o Boitatá nadava atrás do índio que ousou desafiá-lo. As pedras de seu couro brilhavam, escondendo fogo em seus cristais.
Quase nas margens, foi lançado para fora do lago pela força das mulheres das águas. Numa mão, tinha uma das pedras do couro do Boitatá; na outra, segurava a lança com força.
O índio, então, correu na direção do cavalo Ventania sem olhar para trás. Teve um sobressalto quando as águas do lago explodiram em fogo, mas não parou de correr. A cobra, com o corpo incendiando, se lançou em sua direção. O Ventania e os cavalos dos índios se assustaram ao enxergarem o Boitatá e saíram em disparada, sem chances de serem conduzidos pelos cavaleiros. Os dois índios tiveram dificuldades para se manter nas montarias, mas não caíram.
A pedra na mão do jovem começou, também, a arder em chamas, mas o rapaz não a soltou. Ele tentou ir em direção às tolderias, enquanto a fera cuspia fogo sobre ele. Apesar da situação perigosa, Tibiriça estava contente. Pensava ter completado sua prova com êxito.
As mãos do jovem começaram a queimar e doer tanto que Tibiriçá teve que abrir os dedos. A pedra caiu no chão, em chamar vermelhas. A cobra passou a soltar um assobio fino e sinistro, enquanto rastejava na direção do índio, que começou a cambalear – com a cabeça explodindo em dor.
Calmamente, o Boitatá derrubou o jovem índio e o arrastou em direção às águas. Não tinha mais pressa. O couro em brasa iluminava a noite negra.
Tibiriçá, reunindo todas as forças que tinha, conseguiu apertar firme a lança afiada que trazia nas mãos, trazendo-a para junto de seu corpo. Ao entrarem nas águas, o índio aproveitou a distração da cobra-de-fogo e cravou, no crânio da fera, a lança de seu antepassado.
O Boitatá, vendo que que sua vida estava escapando pelo fogo jorrado do ferimento, gritava de dor e de ódio. Prometia as mais terríveis vinganças numa língua que ninguém mais era capaz de entender, nem mesmo os mais sábios. Por fim, os olhos perderam o brilho e a carcaça da cobra passou a afundar. Finalmente, o Boitatá estava morto.
O jovem índio conseguiu sair da água, estava muito queimado e com dor em todo o corpo. Com a fuga dos cavalos, teria uma longa e dolorida noite de caminhada. Felizmente, havia conseguido recuperar a pedra que roubara do animal.
Tibiriçá foi recebido com festa. Todos sabiam da loucura de sua prova de coragem. Ao longe, o pai do menino o observava com os olhos perscrutadores.
– Já tivemos muitas aventuras para uma única noite. Voltem todos para as suas ocas, que o meu filho precisa dos cuidados do nosso pajé.
Os dias que se seguiram foram de muita angústia. Tibiriçá havia conseguido retornar e isso era um milagre. Mas as queimaduras em seu corpo não paravam de arder e, por todo o corpo, espinhas purulentas apareceram. Com febre, o menino delirava – falava coisas sem sentido. Ibajé conhecia todas as lendas e estava preocupado.
Tibiriçá ficou famoso entre os jovens índios – todos queriam visitá-lo, escutar sua versão da história e saber dos detalhes da fera. Não sabiam de mais ninguém que houvesse ido à toca de um Boitatá – ou pelo menos que tivesse sobrevivido para contar a história. Aos poucos, o jovem índio foi voltando ao convívio de todos.
Na primeira festa na aldeia, assim que o índio saiu dos cuidados médicos, ele foi devidamente homenageado e recebeu a autorização, para, quando quisesse, constituir sua própria família. Entre as pessoas mais preocupadas, sempre esteve Potira, a amiga de infância de Tibiriçá. Quando teve oportunidade, ela o abraçou e o chamou para conversarem, mais afastados.
– Tibi, você é louco por fazer uma coisa dessas! Não sabias que bastava uma dança ou domar um potro para ser aprovado? Não precisava querer ser mais que os outros. – Os dois riram.
– Saber eu sabia, mas… – pensou e resolveu que era o momento de fazer a revelação – Um minuto de atenção – pediu ele – Peço a todos que vejam a pedra do couro do Boitatá que eu trouxe! – Mostrou na ponta dos dedos queimados a pedra de um vermelho que reluzia. – Essa é a prova de que eu estive com a fera e que já sou um homem feito, pronto para construir minha casa e minha família. Mas… mais coragem do que eu precisei para enfrentar a cobra-de-fogo eu preciso agora, para enfrentar o pajé, Tibicuera. – disse encarando o velho.
Ninguém entendeu aquela insinuação. Será que haveria um duelo?
– Essa pedra eu trouxe para oferecer para uma pessoa. E antes, tenho que pedir para ele a autorização. – As pessoas começaram a entender. – Tibicuera, posso me casar com a Potira, sua filha?
Houve uma explosão de aplausos, e a pedra virou joia no pescoço da menina. Eram ambos muito jovens, mas o modo como se olhavam, há bastante tempo, denunciava o que sentiam um pelo outro. Ela já sabia que ele era o escolhido para cumprir a profecia que sua mãe contara antes de morrer: “Minha princesa, do teu amor nascerá o escolhido”.
Depois de muita festa, a menina Potira chegou perto de seu noivo para conversar. Eram íntimos, amigos de infância. Não tinham formalidades.
– Por que você não me contou o que ia fazer? – perguntou.
– Achei que gostavas de uma surpresa. – disse, sabendo que ela detestava.
– Dessa vez até que gostei. Mas agora nem adiantaria mais não gostar, não é mesmo? – Eles riram, cúmplices de um mesmo amor – Sei que já contasses a história mil vezes… mas tem uma coisa que eu não entendi nessa confusão toda: como você conseguiu ficar todo aquele tempo embaixo da água sem respirar? Teria morrido!
Tibiriçá apenas sorriu. Esse é um mistério que jamais será revelado. Deu um beijo em sua noiva e aproveitou o resto da festa.
Mais tarde, quando a noite estava alta e as corujas piavam alto, Tibiriçá caminhou sozinho em direção ao ponto mais alto da aldeia, onde costumada observar as fagulhas de fogo no horizonte. Esperou um pouco, apenas para garantir, mas sabia que não veria o espetáculo essa noite.
Olhou para as marcas de queimadura que ardiam em seus braços. Espremeu uma daquelas milhares de espinhas e saiu uma pasta vermelha e ardida. Escondeu os braços sob as mangas, para que ninguém reparasse que a pele queimada estava se transformando em couro duro e preto e que das espinhas brotavam pequenas pedras vermelhas – pontiagudas e quentes.
Sentia-se mal – o calor de seu corpo era insuportável e a ardência no intestino incomodava. Vomitou um pouco de fogo, e a fumaça escapou pelas narinas. Passou a língua pelos dentes afiados e com gosto de cinzas. Voltou para a aldeia lentamente, praguejando frases indecifráveis na língua das bestas.
Alguns meses depois, ficara impossível esconder as marcar do acontecido. O jovem Tibiriçá, antes um menino saudável com seus recém completados quinze anos de idade, agora parecia um ancião. Com a pele ressecada e toda enrugada, incrustada de pedras vermelhas, o menino passara a adotar hábitos noturnos.
Durante as noites, fazia longas e lentas caminhadas. Parecia que o couro do menino estava prestes a rasgar, e ele andava como a se contorcer de dor e raiva. Alheio aos pedidos da sua noiva Potira, o índio não aceitou a ajuda dos mais antigos – não acreditava mais naquelas magias e poções.
Naquela noite em especial, quando o vento limpou as nuvens no céu e a lua minguante, com seu brilho escasso, apareceu a enfeitar o negrume da noite, Tibiriçá perdeu totalmente o controle sobre suas atitudes e seu corpo, que parecia levar porradas por dentro. Num ataque de fúria, a força voltou a seu corpo retorcido e, de seus olhos, saltavam faíscas. O jovem correu em direção a aldeia, que dormia calmamente.
Os urros de fera acordaram todos, mas os homens não conseguiram conter a força do monstro em nascimento. Flechas viraram cinzas antes de encostar no couro de Tibiriçá, e o fogo já cegava seus olhos. Nem reparou quando cuspiu chamas em seu pai e seus amigos, nem mesmo quando se alimentou do sangue quente da menina Potira.
Quando da aldeia restou somente o pó, a fera foi em direção ao lago negro, onde procurava descanso. As pernas já não obedeciam aos comandos, e ele foi se arrastando que conseguiu chegar às margens da água calma. Após um grito ensurdecedor, a cobra-de-fogo despediu-se da pele do que fora o índio Tibiriçá e, rasgando aquele couro ressecado, saiu de dentro de seu hospedeiro.
De tempos em tempos, as cobras-de-fogo também trocam sua pele e podem viver muitos e muitos anos. O que fora Tibiriçá desintegrou-se com o passar dos dias, misturando-se com o pó da terra que tanto amara e destruíra sem nem mesmo saber.
Autor: R. Tavares
Ilustração: Studio Oliven