Raudan, Juan e o silêncio

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(postado originalmente em 2024)

 

Desde que lancei meu primeiro livro, o Noite Escura, ainda em 2009, tem um tema que me persegue. Melhor dizendo, um tema não, uma angústia. Na apresentação daquele livro, Alcy Cheuiche fez uma afirmação dizendo que todo o escritor deve ser mais leitor do que escritor. E essa é uma verdade que me acompanha desde sempre, sempre prefiro ler à escrever, o que torna o processo de escrever um novo livro sempre algo desafiador. Ora, enquanto estou escrevendo uma nova história, outras tantas que eu deveria estar lendo estão paradas nas estantes, ou pipocando em resenhas no Instagram e (o horror dos horrores) em resumos dançados e bobinhos no Tik-Tok.

A angústia que parece estar sempre pairando é: e se você precisasse escolher uma dessas faculdades – ler ou escrever – qual você escolheria? Pode parecer algo simples, mas nem sempre. O escritor, como disse o Alcy, é antes de tudo um leitor, mas será que realmente estamos dispostos a castração literária? Será que já dissemos tudo que queríamos dizer?

Ao mesmo tempo que pensamos nas consequências dessa falta de possibilidade de escrever, fico refletindo se tudo o que dizemos é realmente relevante, se não é um mero exercício do ego, de uma enorme vaidade que nos faz pensar que o que escrevemos realmente importa para o mundo, além de nós mesmos.

Como autor independente, leia-se, que não publica por editoras que façam parte de multinacionais, ou sejam financiadas por bancos, sei que para parte do meio literário a minha opinião não tem relevância, mesmo. Sempre que tentei apontar alguma incongruência de mercado, fui taxado de ressentido. O que me espanta que até a questão da meritocracia já foi levantada nesses debates, afinal se a pessoa está numa grande editora é porque mereceu. Eu concordo. Mas uma pena que quando se fala em meritocracia em qualquer outro ambiente, de trabalho “comum”, por exemplo, aí é um termo que eles detestam. É coisa de extrema-direita. Enfim…

Nesse meio tempo conheci alguns autores que me tocaram muito e que simplesmente deixaram de escrever. Fizeram algumas boas e relevantes obras e olharam para esse material e resolveram: era isso que eu tinha para dizer.

Isso é de um desprendimento tão grande, algo que soa tão absurdo num meio tão vaidoso quanto o literário, que surpreende. Esses dias vi dois escritores de uma grande editora se engalfinhando nas redes sociais, quem era mais censurado do que o outro, no fim acabaram se recomendando tratamento. Esse é o nível da vaidade no meio literário.

Então, nesse meio tão arrogante, você encontrar um Raudan Nassar, causa um tremendo baque, de um lado temos quem realmente se importa com o que escreve e de outro alguns que disputam quem escreve e lança livros mais rápido. E, claro, entre esses dois exemplos extremos, temos a maioria de nós, remando apenas.

A verdade é que o escritor contemporâneo, nesse mundo líquido e veloz, tem medo, sim, de ser esquecido, de ficar cinco anos sem publicar e perder seu espaço na mídia, nas grandes editoras, no carinho do jornalista amigo de café… Porém, a que preço? Literário, digo.

Já no ano de 1996, em artigo na Folha de São Paulo, Otavio Frias Filho questionava:

“Por que Raduan Nassar parou de escrever? Essa pergunta com ares novelescos continua um enigma inexplicado. Depois de se preparar por 20 anos, a consagração veio junto com a estréia no lançamento do romance “Lavoura Arcaica” (1975), seguido de outro êxito atordoante, a novela “Um Copo de Cólera” (1978).

No auge de uma carreira recém-começada, as traduções de vento em popa, quando seus leitores antecipavam proezas ainda maiores que estavam por vir, de repente o escritor paulista anunciou que passava a arar outras terras, trocava a literatura pela agricultura, o que foi festejado como mais uma metáfora do mestre.

Mas não, a decisão era literal, quer dizer, agrícola. Raduan Nassar se exilou num sítio onde se ocupa até hoje de sementes, tratores, fertilizantes. Fala de literatura o mínimo possível, escarnece de escritores e críticos, e logo volta ao assunto principal: o preço do milho, o problema do caruncho, a chegada da entressafra.”

Olhem essas indagações e reflitam se não parecem feitas nos dias de hoje: “O silêncio de Raduan virou uma encantação, um mistério quase policial. Já teria dito o que tinha a dizer? Dedicava-se agora a uma espécie de antiliteratura, a fim de denunciar, pelo mutismo, o embuste das vaidades literárias, da indústria da fama? Descobrira algo que não valia a pena nem seria possível verter em palavras?”.

Já no ano de 2011, depois de 30 anos de vida dedicados ao sítio, Raudan doou a área para uma universidade federal e se exilou ainda mais. Que homem é esse que decide cortar primeiro sua voz e depois as mãos de seu trabalho?

Raudan Nassar não é o único escritor nessa situação. Juan Rulfo seguiu o mesmo caminho. Ele foi um escritor que deu aos camponeses mexicanos uma voz universal. Apesar de não ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, deixou duas grandes obras, o romance ‘Pedro Páramo’ e o livro de contos ‘O chão em chamas’ (talvez fosse melhor “A planície em chamas” ou “A terra em chamas”…).

Essas duas grandes obras deram fama nacional e internacional a Juan Rulfo. Na época, ele foi o escritor mais reconhecido de todo o México. Recebeu elogios de grandes escritores como Jorge Luís Borges, Susan Sontag, Gabriel García Márquez e muitos outros.

A pesquisadora Theresa Bachman investigou algumas possibilidades e deixo o artigo para a matéria aqui (https://vermelho.org.br/2017/01/06/31-anos-sem-juan-rulfo-hipoteses-sobre-o-silencio/), porém a resposta que mais me agrada vem da boca do próprio Rulfo.

Indagado em alguma oportunidade sobre a razão de seu silêncio, ele diz: “O tio que me contava as histórias morreu, por isso não tenho mais de onde tirar a inspiração”.

A maioria das pessoas leva essa resposta como uma simples brincadeira do autor. Mas é certo que Rulfo era um bom ouvinte, ela era um escritor que registrou o universo rural de sua época e espaço, e talvez a falta não apenas de um tio, mas daquelas gentes que foram desaparecendo, tenha tirado o sentido principal de sua escrita.

Escrevi esse longo artigo porque respeito esses escritores que souberam que já tinha escrito o que tinham que escrever e preferiram guardar aquele momento com poucas e boas obras.

Lembrei desses escritores porque me encontro em luto. Uma das minhas avós, que já tinha 97 anos, faleceu recentemente. Ela também era uma fonte inesgotável de pesquisas e de histórias. Ela que me disse que “quem guarda o que não presta, sempre tem o que precisa” (frase presente em Noite Escura), ou, ainda, que me contou que “não embruteceu na estância por causa dos livros” (frase presente no Ainda que a terra se abra).

Enquanto neto mais próximo, estou responsável por guardar suas coisas, folhear esses livros que não permitiram que ela embrutecesse na estância e encontro em cada página uma anotação, uma referência… Ela era minha maior fã. Encontrei em um armário várias pastas de folhas de plástico com todas as vezes que saí no jornal, seja adolescente em festas, seja cantando, seja escrevendo. Ela sempre esteve junto.

Nesse último mês não consegui escrever. Mal e mal tenho conseguido ler. E apenas o Erico, que é como se fosse um carinho de um velho conhecido. Uma releitura para meu conforto.

Por isso, digo que entendo o Rulfo. Será vale seguir depois que nossos contadores de histórias se foram? Também entendo o Nassar. Ora, alimentar a alma é difícil, um trabalho quase impossível nesse país de poucos leitores. Mas trabalhar com as mãos na terra para alimentar as pessoas, para contribuir com o setor que alimenta grande parte do mundo, talvez isso também me fizesse parar de escrever. Ora, vocês acham que acordar antes das 5 da manhã todos os dias para trabalhar pesado na terra, com o gado, com plantações, deixa alguma energia criativa no cidadão? Só pensa assim quem lê o “Milagre da manhã” e acha que a vida real é essa de fazer listinhas no papel e contar quantos litros de água tomou no dia.

Enfim, não me entendam mal. Não estou louvando os “não-escrevedores”, parte de uma síndrome estudada no livro (chatíssimo) Bartleby e Cia do espanhol Villa Mattas. Apenas divido com vocês essa angústia que me aflige.

─ Rodrigo, tu está pensando em parar de escrever? ─ vocês podem estar se perguntando.

A real é que nem estou pensando nisso. Estou sentindo minhas saudades, meu luto e lendo para reconfortar. Enquanto escrever fizer sentido, vou continuar. Mas no dia que não fizer mais, espero ter a coragem e a decência de passar a régua, assim como Rulfo, Nassar e tantos outros.

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