Escritor André Timm fala do Andarilhos

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O escritor André Timm, um dos mais promissores da nova geração, leu e apresentou um belo estudo sobre o livro Andarilhos, e tenho orgulho de compartilhar com vocês.

Em tempo, aproveito para indicar aos meus leitores que conheçam o livro Modos Inacabados de Morrer (André Timm, Ed. Oito e Meio), pois se trata de altíssima literatura.

Segue o ensaio:

“Pampa. ¿Quién dio con la palabra pampa, con esa palabra infinita que es como un sonido y su eco?”

Jorge Luis Borges*

Em Inquisiciones, de 1925, Borges dá início ao que seria nomeado, em sua literatura, como as “orillas”, um espaço geográfico (e literário, na narrativa do escritor), constituído da intersecção entre o arrabal (subúrbio) e o pampa (campo), não podendo, dessa maneira, ser considerado nenhum deles por inteiro e ao mesmo tempo um pouco de cada, já que preservava especificidades e características de ambos. Uma “área cinza”, um espaço estético-literário fronteiriço, que, como toda fronteira, é resiliente, de uma maneira pertinente às subjetividades da literatura.

Em Andarilhos (Martins Livreiro, 2017), de R. Tavares, embora a ambientação geográfica seja precisa (o próprio Pampa, no Rio Grande do Sul do início do século passado), essa característica movediça, semelhante às “orillas” de Borges, está na natureza dos personagens, sempre construídos a partir de algo entre o passado e o futuro, entre o que foram e o que são. Os personagens de Andarilhos são, eles próprios, espécies de “orillas”.

E é na construção dos conflitos que forjam esses personagens que a história se move. A exemplo de grandes autores que trouxeram o Rio Grande do Sul de outrora em suas narrativas, como Érico Veríssimo e Letícia Wierzchowski (na prosa) ou João Da Cunha Vargas (na poesia), R. Tavares mostra, antes de tudo, uma capacidade ímpar de trazer à vida, de forma pulsante, essa região que é parte da própria identidade que define o gaúcho. Mas além, em sua estreia no romance, o autor demonstra talento e sagacidade para conduzir a narrativa com rédeas firmes, entretecendo fios narrativos que unem personagens ficcionais a personas reais de nossa história recente.

Deixando o pago, poema de João da Cunha Vargas musicado por Vitor Ramil

Em sua Estética do Frio, Vitor Ramil elege a milonga como o gênero musical mais apropriado às feições do pampa e estabelece sete valores que pautam essa estética, sendo rigor, profundidade, clareza, concisão, pureza, leveza e melancolia, valores que podem ser nitidamente identificados na construção do pampa e na prôpria tônica da narrativa de Andarilhos.

A própria idéia do frio como metáfora amplamente definidora apontava para esse caminho: o frio nos tocava a todos em nossa heterogeneidade. Então me perguntei: como seria uma estética do frio? Por onde começar […] Minha atenção se dirigia à sua atmosfera melancólica e introspectiva e à sua alta definição como imagem — a figura bem delineada do gaúcho, o céu límpido, o campo imenso de um verde regular, a linha reta do horizonte. Essa nítida e expressiva composição de poucos elementos, que o frio fazia abrigarem-se em si mesmos, não desperdiçarem energia e se alimentarem das próprias reservas como ursos a hibernar, sugeria uma natureza resultante de um trabalho ao mesmo tempo casual e criterioso, e denotava rigor, profundidade, concisão, clareza, sutileza, leveza.

Leia a Estética do Frio na íntegra aqui.

Já é um clichê afirmar que o local pode ser universal, mas em R. Tavares, o uso da máxima é plenamente justificável, pois aquilo que acomete João Fôia, Pedro Guarany e Alphonse Saint Dominguet, tríade de personagens principais em Andarilhos, também o é reconhecível por qualquer pessoa, seja no extremo sul do Rio Grande do Sul ou em qualquer outro lugar do mundo.

São inúmeras em todo o curso da literatura as histórias pautadas a partir das paixões proibidas e os infortúnios advindos delas. Já fazem parte de nosso imaginário, pois a impossibilidade e o amor são também elementos que quando justapostos resultam nas tragédias que tanto nos afligem mas também nos atraem, talvez por nos sentirmos menos solitários diante do entendimento de que dificilmente sofremos sozinhos e de que raramente somos uma coisa apenas. Andarilhos nos coloca diante das dualidades que nos fazem humanos, mas também dos matizes que nos constituem e nos forjam muito mais do que os extremos, seja na vastidão do pampa ou em quaisquer outros espaços, dentro ou fora de nós.

“Somos unos dejados de la mano de Dios, nuestro corazón no confirma ninguna fe, pero en cuatro cosas sí creemos: en que la pampa es un sagrario, en que el primer paisano es muy hombre, en la reciedumbre de los malevos, en la dulzura generosa del arrabal.”*


La Pampa y el suburbio son dioses, do livro El tamaño de mi esperanza, de Jorge Luis Borges.

Post original: https://medium.com/@andretimm/andarilhos-a1196924073d

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